A panela de pressão sibila impaciente sobre o fogo, anunciando que a porção de feijão preto está pronta para consumo. Naquela casa, entretanto, o grão mais recorrente nas refeições nacionais alimentará outra instância dos imperativos humanos: a arte.
Tem sido assim na casa de Josi, artista plástica recém-formada pela Escola Guignard da UEMG. Filha do Vale do Jequitinhonha, criou-se no município de Carbonita. Embora desde sempre ansiasse em se tornar uma artista, cresceu sendo treinada e aprendendo os labores da mãe, costureira, e da avó, lavadeira e passadeira.
O destino que se lhe insinuava ali era moto-contínuo, na reprodução das atividades das mulheres de sua família, reiniciando um ciclo herdado de serviços duros e repetitivos. Conforme crescia, porém, acabou repelindo os afazeres domésticos para buscar, incentivada pelos pais, fortuna de melhores dias nos estudos.
Para tanto, em determinado momento de sua história a família se muda para a Região Metropolitana de Belo Horizonte, no município de Caeté, e o irmão é o primeiro da família a cursar uma graduação: Letras, na UFMG. Inspirada por ele, Josi conta que, posteriormente, também concorreu ao vestibular, mas para o curso de Belas Artes, para o qual reprovou justamente nas provas de habilidades específicas.
Tendo, nesse mesmo processo, a possibilidade de ingressar em uma segunda opção de curso, matriculou-se na licenciatura em Letras.
Morando em Caeté e estudando na UFMG, a delonga no trajeto entre sua casa e as aulas lhe rendia quase três horas diárias de impossibilidades, que preenchia com grafite sobre o papel, desenhando durante as viagens de ônibus as pessoas e situações com as quais se deparava. Criava, assim, estratégias para enfrentamento das distintas interdições a que a vida lhe impelia.
A formação superior lhe assegurou cinco anos no exercício da docência. Se somados ao período trabalhado como servidora das bibliotecas das escolas públicas municipais, foram 14 anos em contato com a Educação.
Arte como expressão da própria individualidade
Ainda buscando a complementação de sua expressão no mundo, ingressou no curso de Artes Plásticas na Escola Guignard/UEMG. Cursara mais da metade de sua graduação, equilibrando-a com a profissão, até que o destino exerceu sobre ela seu humor peculiar.
Diante daquela pandemia que modificou em 2020 o cotidiano da humanidade, uma doença cujo vírus pouco se conhecia e contra o qual até então não existia qualquer proteção imunológica eficaz, Josi se via novamente às voltas com os afazeres domésticos, os quais tanto rejeitara quando mais jovem.
Naqueles meses em que a esfera acadêmica adentrou irremediavelmente o ambiente doméstico, passou a ter aulas com a professora Thereza Portes, que assimilou o ambiente íntimo às aulas e passou a lhe instigar a repensar o próprio processo de obtenção de pigmentos para suas pinturas. “Ela tinha ali uma proposição, pesquisas maravilhosas com tintas naturais”, relata Josi. “Em vez de irmos direto no tubo de tinta e começar a pintar, ela nos propôs a pensar o que era o pigmento, o aglutinante”.
E foi exatamente durante a prática de suas atividades rotineiras que veio a descobrir a tinta que concederia identidade peculiar à sua obra artística: a mancha causada pelo caldo de feijão preto que escorria pela panela.
A partir dali passou a pesquisar as propriedades do caldo de feijão preto na utilização de suas pinturas e desenhos, como, por exemplo, se o tempo de fervura ou quantidades de ingredientes alterava as tonalidades ou mesmo se o uso de temperos influenciava os resultados.
Percebeu no processo que a tinta carregava similaridades inesperadas com as atividades da infância: “eu reconheci este verbo, quarar, no relacionamento com as tintas (...) extraídas de sementes, raízes e folhas”, conta. “Elas têm essa característica de que se alteram enquanto você está pintando. E a ‘construção’ precisa desse tempo de espera. E esse verbo está aqui comigo a partir de vivências, memórias e escutas”, analisa.
E se, por inferência, pudermos considerar que o termo quarar na lavagem de roupas se assemelhe a uma espécie de indução do tecido ao esquecimento daquilo que o manchou, já o mesmo procedimento, quando transposto para a técnica artística de Josi, tenciona seu exato oposto, que é revelar.
Assim, nesse quarar-reverso, termo que a própria artista usa para definir sua técnica, camada por camada vão se formando as imagens que materializa em sua obra, não exatamente partindo de uma ideia pré-concebida, mas interpretando o que as nuances das camadas, sobrepostas, confiadas aos efeitos do tempo, anseiam expressar.
E em se falando em camadas, Josi adiciona, quando faz uso do termo típico do trabalho manual, uma redenção às próprias origens. Isso porque em vez de simplesmente repelir os duros expedientes que foram legados às suas gerações femininas anteriores, passa a integrá-los como componentes de sua própria história e a subvertê-los, quando os eleva do mero patamar laboral à condição de arte.
Revisitando o destino que se evidenciava quando criança em contrapartida àquilo que alcançou, reflete: “Há coisas que são quase compulsórias, que você é treinado para fazer, para servir, modeladas em ideias de gênero, classe social, de cor. Existe uma pavimentação ali que te traz quase algo compulsório. Então eu poder estar aqui hoje, trançando minhas subjetividades nessas atividades conforme o meu interesse, eu sinto que estou também honrando essas pessoas e essas atividades”, analisa e complementa: “Essa questão do quarar relacionada ao embranquecimento é uma coisa também importante para mim, porque tem essa camada de operar também essa reversão de um embranquecimento, em que podemos pensar em uma decolonialidade”.
Trajetória de reconhecimento
A compreensão de que essa retomada algo subversiva das próprias raízes, evidenciada pela deliciosa metalinguagem do caldo do feijão tornando-se substrato de sua arte, potencializou sua obra, a ponto de ter sido, em 2022, multiplamente laureada: recebeu o Prêmio PIPA, um dos principais reconhecimentos da arte contemporânea brasileira, e o 8º Prêmio Artes Tomie Ohtake – Edição Mulheres, que neste ano teve o intuito de reconhecer suas trajetórias e potencialidades artísticas, como forma de responder à histórica falta de visibilidade conferida às produções femininas.
E como se não coubesse inteira nessa panela, o talento (ou o treino, como costuma dizer) ainda se transbordou para a realização de uma mostra, encerrada há pouco, no início de outubro, na Casa Fiat de Cultura. “Para mim é uma espécie de celebração múltipla, porque [Quarar-reverso] é minha primeira exposição individual, que é também o nome da minha pesquisa de TCC [Trabalho de Conclusão de Curso]", afirma.
Sobre o período de ensino-aprendizagem com Josi, sua orientadora e professora Thereza Portes reverencia: "[No trabalho de Josi] o cotidiano e o passado se entrelaçam e passam a guiá-la pela representação dos seus ofícios da costura - escrita - lavação de roupa. Tudo cria um sentido: a descoberta da água do feijão de todos os dias que, de repente, se torna novidade com o roxo azulado que aparece bem no fundo da panela. A cor encontrada se modifica, criando memórias", analisa. "Assim, atravessamos a pandemia juntas, aquecendo estruturas de aprendizado que não passam apenas pelas discussões de códigos da arte contemporânea: uma conversa de cozinha e um quarar de plantios, colheitas e fervuras", conclui.
As obras da artista plástica estarão em exposição, entre os dias 19 de novembro de 2022 a 5 de fevereiro de 2023, em São Paulo, juntamente com as demais agraciadas no 8º Prêmio do Instituto Tomie Ohtake.
Leonardo Araújo - Assessoria de Comunicação da UEMG
Imagens: Leo Lara, Pedro Agilson e Josiley Souza