Contraste |
| |

    Ciência e arte reatam laços do passado para tratar da complexidade...

    Ana Paula Orlandi | Revista Pesquisa Fapesp

    Visão múltipla

    Ciência e arte reatam laços do passado para tratar da complexidade do mundo contemporâneo

    Obra da série “Memória Ótica” (2014), em que o artista visual Otavio Schipper investiga questões como perspectiva, ponto de vista e percepção visual | Gabi Carrera

    Em meio aos 50 pesquisadores, entre biólogos, químicos, físicos, geógrafos e oceanógrafos, que integram a equipe do projeto Mephysto/Proantar-Nordeste figura o nome da artista visual Karla Brunet, do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (IHAC-UFBA). Em outubro de 2019, ela e outros 10 cientistas do grupo interdisciplinar comandado pela UFBA e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) embarcaram no navio polar Almirante Maximiano como parte da 38ª Operação Antártica desenvolvida pela Marinha do Brasil (OP-38), que durou até abril do ano passado. Responsável pela divulgação científica do projeto contemplado por edital do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), durante cerca de dois meses Brunet não apenas documentou o trabalho dos pesquisadores e a vida a bordo, como também produziu material que transformaria em obras de arte.


    Desde o ano passado quatro trabalhos de arte digital gerados a partir daquele período vêm sendo apresentados em conferências e festivais. Um deles é a videoarte Convergência Antártica, que Brunet assina com Toni Oliveira, responsável pela trilha sonora e coordenador do curso superior tecnológico em produção musical da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), bem como José Garcia e Carlos Lentini, ambos do Instituto de Física da UFBA. A obra, que reúne sons, imagens e dados da pesquisa realizada ao redor da ilha King George, participou do RIXC Festival – 5th open fields conference and ecodata exhibition, realizado em 2020, na Letônia. Em outubro passado, Brunet exibiu no Artech 2021 hybrid praxis – Art, sustainability & technology, a 10ª Conferência Internacional de Artes Digitais e Interativas, na cidade de Aveiro, em Portugal, a performance de live cinema denominada Antártica tempo. “O tempo é uma questão fundamental na Antártica: refere-se tanto ao clima meteorológico quanto ao período autorizado pela Marinha para que possamos fazer pesquisa de campo fora do navio, por exemplo”, relata a pesquisadora.


    Segundo Moacyr Cunha de Araújo Filho, do Departamento de Oceanografia da UFPE e coordenador-geral do projeto, a junção de arte e ciência é uma demanda do século XXI. Daí a participação de Brunet na expedição científica Biocomplexidade e interações físico-químico-biológicas em múltiplas escalas no Atlântico Sudoeste, que investiga os motivos da alta biodiversidade em regiões com grandes turbulências marítimas, como é o caso da Antártica, e o impacto da presença de microplásticos, resultado da poluição, na vida marinha. “A arte emociona, tem um poder de comunicação maravilhoso, faz com que a ciência chegue à sociedade”, avalia o pesquisador, vice-reitor da UFPE. “O trabalho da Karla proporcionou uma grande projeção para o projeto Mephysto, maior do que a gente esperava.” Com ele concorda Jailson Bittencourt de Andrade, do Centro Interdisciplinar de Energia e Ambiente (CIEnAm) da UFBA e co-coordenador do Mephysto. “Ela trouxe um olhar novo, que potencializou nosso trabalho científico”, diz Andrade, que responde por outros dois projetos de pesquisa voltados para o litoral baiano, com a participação de Brunet.


    Coordenadora do Ecoarte, grupo interdisciplinar de arte, tecnologia e meio ambiente da UFBA, Brunet define o que faz de arteciência, um conceito ainda em formação. “A ideia não é nova: basta lembrar de Leonardo da Vinci [1452-1519]”, observa a pesquisadora referindo-se ao  mestre renascentista que foi cientista, inventor e artista. Para o pesquisador brasileiro João Silveira, responsável pelo polo de Inovação e Empreendedorismo do Lab e.nov, laboratório de cultura digital da École Nationale Supérieure du Pétrole et des Moteurs, na França, o Renascimento marca um dos momentos mais importantes para a união dessas áreas no Ocidente por intermédio não apenas dos trabalhos de Da Vinci, mas também dos produzidos pelo arquiteto e escultor Filippo Brunelleschi (1377-1446),  pelo pintor e matemático alemão Albrecht Dürer (1471-1528), entre outros. “As fronteiras entre os campos não estavam nítidas”, aponta Silveira, que pesquisou o conceito de arteciência (uma palavra só) no mestrado e doutorado em educação, gestão e difusão de biociências – esse último realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Harvard, nos Estados Unidos.

    Frame do vídeo “Antártica tempo” (2020), de Karla Brunet, com imagens captadas durante expedição científica do projeto (Mephysto/Proantar-Nordeste)


    Mephysto/Proantar-Nordeste Frame do vídeo “Antártica tempo” (2020), de Karla Brunet, com imagens captadas durante expedição científica do projetoMephysto/Proantar-Nordeste
    De acordo com Silveira, o distanciamento entre ciência e arte é um efeito colateral do Racionalismo cartesiano nos séculos XVI e XVII, mas se aprofundou no século XIX, durante a Revolução Industrial. “A partir da segunda metade do século XVIII buscou-se maior especialização das áreas em nome da produtividade”, assinala o pesquisador. Para o biólogo Raphael Alves Feitosa, da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudioso do tema, o contexto atual envolve outra dinâmica. “Precisamos de muitas áreas de conhecimento para lidar com as complexas questões do mundo contemporâneo. É o caso, por exemplo, do aquecimento global, que reúne aspectos não apenas ambientais, mas sociais, políticos e econômicos.”


    Indícios dessa reaproximação entre arte e ciência iniciada em meados do século passado e intensificada nas últimas duas décadas estão em espaços como o Symbiotica, da Universidade do Oeste da Austrália, o Art|Sci Center, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos Estados Unidos, e o The Ars Electronica Center, na Áustria. “É uma área em formação e que recebe distintas designações, como arteciência, ciênciarte, arte e tecnologia e bioarte”, observa Silveira.


    Outro exemplo de instituição científica que flerta com a arte é a Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (Cern), centro de pesquisa na Suíça conhecido pelo estudo das bases constituintes da matéria por meio de aceleradores e detectores de partículas. Em 2019 o carioca Otávio Schipper passou 10 dias na instituição, como artista convidado. Na oportunidade dialogou com engenheiros, especialistas em tecnologia da informação e físicos como ele próprio – antes de se tornar artista visual, há 15 anos, Schipper trabalhou no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro. A temporada no Cern contribuiu para uma das obras que o artista atualmente desenvolve, cuja ideia é articular elementos como o Grande K, apelido do cilindro de metal que serviu de protótipo internacional do quilograma do século XVIII até 2019 (ver Pesquisa FAPESP nº 256), e a obra do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). “Meus trabalhos buscam refletir sobre a história da tecnologia e do pensamento científico”, diz.


    Para o artista visual Milton Sogabe, professor aposentado do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-Unesp) e hoje docente na pós-graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi (UAM), no Brasil é possível localizar exemplos da junção entre arte e ciência desde pelo menos a década de 1950, caso do trabalho desenvolvido pelo potiguar Abraham Palatnik (1928-2020), um dos pioneiros da arte cinética no país. Outro exemplo são as obras produzidas com computador no final dos anos 1960 pelo concretista ítalo-brasileiro Waldemar Cordeiro (1925-1973) em parceria com o físico e engenheiro Giorgio Moscati. Em 1971, Cordeiro realizou na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) a exposição Arteônica, apontada como uma das primeiras mostras de arte digital no mundo. No ano seguinte, pouco antes de morrer, ajudou a criar o Centro de Processamento de Imagens do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-Unicamp) e lá desenvolveu alguns de seus experimentos.


    Detalhe da instalação “Mecânico inconsciente” (2010-2014),
    do artista visual Otavio Schipper e do músico Sergio Krakowski.
    Nela, telégrafo e lâmpada incandescente
    são ativados por sons
    (Otavio Schipper)


    Otavio Schipper Detalhe da instalação “Mecânico inconsciente” (2010-2014), do artista visual Otavio Schipper e do músico Sergio Krakowski. Nela, telégrafo e lâmpada incandescente são ativados por sonsOtavio Schipper
    Desde 2009 Sogabe dirige, na Unesp, o grupo de pesquisa cAt – ciência/Arte/tecnologia, em parceria com o engenheiro, físico e fotógrafo Fernando Fogliano. Em 1996, a artista visual Rosangella Leote e o matemático Hermes Renato Hildebrand, hoje professor do IA-Unicamp, criaram o Grupo SCIArts – Equipe Interdisciplinar, cuja obra de estreia foi a instalação multimídia Por um fio, naquele mesmo ano “Nosso trabalho questiona a existência de fronteiras entre os campos da arte, tecnologia e ciência, além da própria questão de autoria”, explica Leote, atual coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes da Unesp, a respeito do grupo independente que até hoje se mantém na ativa.


    Leote também está à frente do Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Arte, Ciência e Tecnologia (Giip), na Unesp, que reúne estudantes de graduação, pós-graduação e pesquisadores de diferentes áreas e universidades. “No momento, desenvolvemos o Face Guarani, projeto de inteligência artificial que busca converter dados científicos do aquífero Guarani, como a temperatura da água, em imagens e sons”, conta a pesquisadora. O Giip integra o Fórum de Grupos de Pesquisa em Arte, Ciência e Tecnologia, iniciativa lançada em 2021, por sugestão de Sogabe, durante o X Encontro Internacional de Grupos de Pesquisa: convergências em arte, ciência, tecnologia & realidades mistas, organizado pelo cAt – ciência/Arte/tecnologia, Giip e o Grupo de Pesquisa Realidades, da Universidade de São Paulo (USP).  Para reunir quem trabalha com a temática em universidades brasileiras, o fórum realizou um mapeamento inicial, que localizou 24 grupos em vários pontos do país. “O perfil é bem diverso e inclui várias gerações de pesquisadores, a partir da década de 1980”, informa Sogabe.


    “É importante não perder de vista que os profissionais dos dois campos atendem a interesses distintos. Quando faço um trabalho artístico utilizando ferramentas da ciência, meu objetivo como artista não é, obviamente, fazer uma descoberta científica, mas me deparar com a potência artística dessa experiência”, observa o artista visual Guto Nóbrega, da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ e um dos coordenadores do Núcleo de Arte e Novos Organismos (Nano), naquela instituição.


    Criado em 2010, o grupo reúne estudantes de graduação da EBA-UFRJ e uma rede de colaboradores que inclui alunos da graduação e pós-graduação de disciplinas como arquitetura, comunicação visual, desenho industrial, ciência da computação, engenharia elétrica e engenharia mecânica. Entre os projetos realizados com apoio estrutural do Nano estão o BOT_anic (2012), “um composto planta/sistema robótico, que estabelece com o observador um jogo sensível quando o mesmo interage com a planta através de sua respiração”, nas palavras de Nóbrega, autor da obra. “Nossa meta é discutir como a arte estabelece pontes com o sensível e se conecta à ciência contemporânea e à ciência tradicional, a exemplo da tecnologia desenvolvida por grupos indígenas”, aponta a artista visual Maria Luiza Fragoso, da EBA-UFRJ e coordenadora do Nano.

    Divulgação cAt “Sopro”,
    obra interativa do grupo cAt – ciência/Arte/tecnologia, da Unesp,
    que é alimentada por sopros em cataventos.
    Milton Sogabe é o primeiro à esquerda
    Divulgação cAt


    Segundo Sogabe, a iniciativa do Fórum já rende frutos. Em setembro passado os grupos se reuniram em um encontro virtual e em 2022 devem participar de uma exposição no 20º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, no Museu Nacional da República, em Brasília. O evento foi criado pelos professores Suzete Venturelli, Tania Fraga e Aluízio Arcela na Universidade de Brasília (UnB), em 1989, e hoje conta com a participação da Universidade Federal de Goiás (UFG). “É um dos encontros mais antigos do gênero no país, que muito contribuiu com o campo de estudos sobre  tecnologia, artes e comunicação ao agrupar discussões emergentes com outras, já em desenvolvimento, no Brasil e no mundo”, informa Pablo Gobira, da Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), em Belo Horizonte.


    O Congresso Internacional de Arte, Ciência e Tecnologia realizado desde 2015 pelo Laboratório de Poéticas Fronteiriças (Labfront), coordenado por Gobira na Uemg, almeja a mesma longevidade. O evento, cuja 6ª edição aconteceu de forma on-line em março passado, é um dos projetos do laboratório que, entre outras coisas, desenvolve atividades ligadas, por exemplo, à memória digital e cidades inteligentes. A equipe transdisciplinar reúne não apenas os estudantes da Guignard, uma das mais tradicionais escolas de arte do país, mas alunos e professores de cursos de graduação em urbanismo, biologia, ciência da computação e letras da Uemg e de outras universidades brasileiras.


    Formado em Letras, Gobira ministra o módulo de bioarte no curso de verão de engenharia de máquinas biológicas, uma das atividades do IdeaReal, laboratório interdisciplinar criado em 2018 no Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG). O objetivo do curso é preparar candidatos, como estudantes de ensino médio, graduação e pós-graduação, para a competição internacional de engenharia de sistemas biológicos (iGEM), evento anual do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Na primeira edição, em 2019, o curso selecionou 40 alunos entre os 900 inscritos. “Há um interesse crescente na utilização da biologia para fazer arte”, observa a bióloga Liza Felicori, do ICB-UFMG e coordenadora do espaço, que é aberto à comunidade.


    Conforme Felicori, artistas que se embrenham por essa seara acabam se deparando com questões que envolvem ética e segurança. “A gente não tem legislação no Brasil sobre arte com organismos geneticamente modificados. Em nosso laboratório trabalhamos com organismos que não são patogênicos, mas mesmo assim todos os cuidados são tomados em relação à manutenção e descarte. Outra questão, essa do ponto de vista ético, diz respeito à utilização de animais tanto em laboratórios quanto em obras de arte. São discussões que precisam acontecer”, conclui Felicori.

    © 2024 UEMG